No começo da noite de 25 de maio deste ano, ao ver a chamada na TV para a reportagem que revelaria que Alexandra Dougokenski, 33 anos, admitiu ter matado Rafael Mateus Winques, 11 anos, a autônoma Helena Dougokenski, 40 anos, desesperou-se. De Porto Alegre, ligou para a mãe, em Alpestre, no Norte. 


Se a ex-cunhada fora capaz de confessar que tirou a vida do próprio filho 10 dias antes, em Planalto, aquela era a oportunidade para tentar mais uma vez reabrir a investigação da morte do irmão e primeiro marido de Alexandra, José Dougokenski, ocorrida em fevereiro de 2007. A confirmação do assassinato do menino com o uso de uma corda de varal — mesmo objeto encontrado no local da morte de José — fez família reviver a dor guardada há 13 anos.


O agricultor José Dougokenski morreu aos 32 anos em 5 de fevereiro de 2007, supostamente ao tirar a própria vida no interior de Farroupilha, na Serra, por enforcamento. Alexandra e o filho do casal, então com três anos, eram os únicos que, segundo relato dela, estavam na casa. O inquérito policial confirmou a hipótese de suicídio e o caso foi arquivado. Os Dougokenski nunca aceitaram essa versão.


— Meu irmão não tinha motivos pra tirar a vida, ele amava muito o filho. Faz 13 anos, mas, quando Rafael morreu, sentimos tudo de novo — afirma Helena.


O assassinato do menino em Planalto — Alexandra responde por homicídio doloso (quando há intenção de matar) — foi o gatilho para a família voltar a lutar pela reabertura da investigação. A advogada criminalista Maura da Silva Leitzke pediu o desarquivamento dos autos do inquérito, elaborou análise do perfil criminal, comparando características das duas mortes, e identificou semelhanças entre o caso do garoto, em maio de 2020, e a de José, em 2007.


— Constatamos que as duas mortes têm semelhança que supera os 95% entre a forma de agir, meio e local de execução, instrumentos e tentativa de ocultar os vestígios do crime. A partir daí, contratamos uma perícia particular, que apontou que a morte tem todas as características de uma simulação de suicídio. Que teria sido praticado por alguém que premedita o crime e que, após, toma todos os cuidados para fazer parecer que se tratou de um suicídio — diz a advogada.


O pedido de desarquivamento do inquérito foi entregue nesta terça-feira (6) por Maura ao Ministério Público (MP) em Farroupilha e reacende as esperanças da família. A defesa de Alexandra nega as novas suspeitas (leia os contrapontos ao final da reportagem).


— Esperamos que o MP acolha esse pedido e se inicie nova investigação, levando em consideração todas as contradições levantadas e provadas. Os laudos são definitivos para demonstrar não autoria do crime, mas que os fatos de 5 fevereiro de 2007 não se deram da forma como a investigação foi concluída na época — afirma a advogada.


Segundo a família, Alexandra teria se demonstrado indiferente à perda do companheiro no velório e logo teria se recuperado do luto — 20 dias depois, Alexandra estaria morando com outro homem —, alimentando as desconfianças da família sobre a versão do suicídio. GZH teve acesso ao inquérito da época, que citam depoimentos que mencionariam a existência de um suposto amante de Alexandra e de animosidades entre o casal.


— Estas versões não foram investigadas na época. Só mencionadas no inquérito — diz Maura.


"A cena do crime foi preparada", diz perito


Natural de Alpestre, José conheceu a então esposa em uma viagem de férias para a casa de um parente, em Planalto. Alexandra era vizinha da tia dele. Os dois se aproximaram. Aos 15 anos, Alexandra engravidou. Ela e José formalizaram a união e o casal passou a viver em Caxias do Sul. Quatro meses antes de José morrer, ambos haviam se mudado para uma propriedade rural em Linha Julieta, interior de Farroupilha, onde o marido trabalhava como caseiro. Alexandra tinha 19 anos e um filho de três.


No depoimento que deu à polícia em 5 de fevereiro de 2007, Alexandra diz que o marido era fechado, quieto e que havia comprado três garrafas de cachaça horas antes de morrer. Segundo relato dela, por volta das 22h30min da noite anterior, José estava embriagado quando mandou ela deitar. Alexandra conta que teria ido com o filho para o quarto de hóspedes. Minutos depois, teria ouvido o marido fazer barulho e suspirar forte. Assustada, afirma ter ido ao quarto do casal e encontrado o corpo de José pendurado em uma corda de varal azul presa na viga do teto. Para socorrê-lo, subiu na cama, cortou a corda mas identificou que já estava sem vida. Ligou, então, para o patrão e foi para a casa da vizinha.


O boletim de ocorrência aponta que a Brigada Militar foi acionada por volta de 1h30min do dia 5 de fevereiro. A perícia chegou ao local às 4h. O laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP) feito na época confirma a presença de sete decigramas de álcool etílico por litro de sangue em José. O exame aponta que o agricultor estava deitado de bruços, próximo à porta do quarto com a corda ainda no pescoço. Um pedaço da mesma corda estava amarrado aos caibros de madeira do forro. Havia pedaços de madeira sobre a cama. "Não se percebia nada que nos indicasse que ali ocorrera algum tipo de luta ou qualquer forma de violência", frisa o laudo de 2007.


O documento conclui "com grande margem de certeza", tratar-se de suicídio. O inquérito iniciado pelo delegado Valdernei Tonete foi finalizado pela delegada Marinês Trevisan, em novembro de 2007, com a conclusão de suicídio. O Ministério Público pediu arquivamento do caso em agosto de 2009, aceito pela Justiça.


Treze anos depois, uma perícia particular contratada pela família revela outra versão para o que teria acontecido naquela noite. O novo laudo compara as fotografias do corpo com características obrigatórias de um suicídio como o narrado por Alexandra.


— Me convenci de que foi homicídio pelos elementos técnicos. A cena do crime foi preparada. Ao analisar minunciosamente, é possível ver total incompatibilidade com a cena de um suicídio  — afirma o perito Eduardo Llanos, que tem 30 anos de experiência em perícia criminal, parte deles atuando na polícia do Chile, e é proprietário de uma empresa do ramo em São Paulo.


Nove pontos indicados pela perícia particular


O especialista explica que, no caso de enforcamento com suspensão completa do corpo, independentemente do tipo de nó, a marca no pescoço tem aparência oblíqua ou ascendente. Segundo o perito, as imagens das marcas no pescoço de José revelam o contrário: uma marca horizontal que determinaria que a pressão exercida no pescoço foi feita por terceiro e não pelo peso do próprio corpo da vítima suspenso na corda. "Quando a pessoa se enforca e fica com o corpo suspenso, ela tem diferentes afundamentos no pescoço. No pescoço de José, a marca está em linha reta", afirma.


Outro ponto que chama atenção do Eduardo Llanos é a localização do nó, que está atado rente ao pescoço de José. No caso de suspensão do corpo, a marca do nó fica interrompida pois ele se separa do pescoço. "Obrigatoriamente, o nó ficaria separado do pescoço, nunca ficaria grudado. Neste caso, há a marca completa do nó no pescoço, está presente na pele. Isso indica que a pressão do nó não foi realizada pelo peso do corpo e sim por uma força externa, que efetuou pressão contrária."


Llanos aponta que o corpo apresentava manchas vermelhas no tórax, na barriga e na parte anterior das pernas. Se o cadáver tivesse ficado suspenso, o sangue se acumularia nas mãos, nos pés e em parte das pernas. "Isso indica que ele estava o tempo todo deitado",  sinaliza.


Duas manchas brancas no abdômen também chamaram atenção. Segundo o perito, elas indicam que havia elementos pressionando a barriga de José (caso contrário o sangue se espalharia). "Se o corpo tivesse estado o tempo todo de barriga para baixo, o abdômen ficaria todo vermelho. Temos indicativo que um elemento grande fez pressão contra a barriga dele e esse elemento não se encontrava no chão onde ele foi localizado. Isso nos indica que ele pode ter sido morto em outro lugar. No momento em que existe evidências pelos livores hipostáticos (acúmulo de sangue nos vasos das áreas de maior declive pela ação gravitacional no corpo, após a morte) de que o corpo pode ter sido morto em um lugar e movimentado para o local onde a polícia o encontrou, determina que a força aplicada para movê-lo não condiz com a capacidade da esposa e precisaria de uma terceira pessoa", explica o perito.


Em depoimento, Alexandra diz que subiu em cima da cama, pegou o corpo, segurou e cortou a corda. O perito acredita que, pela estatura física dela, isso não seria possível — durante a reconstituição da morte do filho, em junho, Alexandra não conseguiu segurar um boneco de 40 quilos –, já que José pesava 90 quilos. "O corpo foi encontrado na porta do quarto, a um metro do local onde teria sido o enforcamento. Ela teria conseguido movimentá-lo sem deixar cair e isso causar uma fratura no corpo? Ela nem sequer tira a corda do pescoço do marido. A perícia da época constatou que o nó corrediço era de fácil manipulação. Mas ele estava pressionando o pescoço até a chegada da perícia, cinco horas após a hora da morte."


De acordo com o perito, também não há indicativos de que José ou Alexandra tenham subido sobre a cama. Na hipótese de José ter pisado no móvel para procurar uma viga em que pudesse amarrar a corda, o lençol branco teria marcas dos seus pés que, segundo as fotografias, estavam sujos. Ainda sobre esse detalhe, Llanos afirma que a quantidade de madeira sobre a cama é superior e incompatível a que foi retirada do forro para se abrir o buraco e amarrar a corda. "Também fizemos a análise das mãos e ela não apresentava nenhum vestígio de transferência de madeira, farpas ou machucados. Nada nas unhas que pudesse indicar que ele usou as mãos. Também não foi localizado martelo ou serrote no local. Na época, a polícia não fez levantamento comparando a altura de José com a distância da cama e da viga para ver se ele conseguiria fazer aquilo."


A manifestação da esposa de que ouviu barulho do marido e um último suspiro também é contestada pela perícia particular: ao cometer enforcamento por suspensão completa do corpo, todas as vias aéreas são obstruídas — não há possibilidade de saída ou entrada de ar —, não é possível acionar as cordas vocais e nem, portanto, emitir som. "Naquela posição, ele não teria como gemer ou dar um suspiro, a menos que esse suspiro tenha sido nas mãos do autor do crime", diz o perito.


Na avaliação do perito, a quantidade de álcool ingerido — sete decigramas por litro de sangue — teria alterado o estado de consciência e a capacidade de discernimento de José para adotar uma lógica de suicídio como a narrada por Alexandra: "Bêbado, o cara não conseguiria tirar a madeira do forro, pegar uma escada, passar a corda na viga, levar a escada embora, fazer o nó e se pendurar. É impossível ele ter premeditado e feito tudo aquilo no estado etílico em que se encontrava. E se ele tivesse quebrado o forro, faria barulho e a mulher teria acordado."


Para a Llanos, a inexistência de um laudo toxicológico do corpo impede que se identifique se José ingeriu algo além de álcool naquela noite. Outra evidência, na análise do perito, é que o rosto de José estava roxo. Na explicação do perito, isso ocorre por que a pressão exercida pela corda permitiu que veias e artérias circulassem apenas no rosto, devido à compressão incompleta do objeto. "Se ele tivesse se pendurado por uma corda, com todo esse peso, o rosto ficaria branco pois haveria a suspensão completa tanto de ar quanto do sangue. Ficaria branco como um papel. E 90 quilos pendurados com uma corda de varal, teríamos uma lesão obrigatória no pescoço. E não existe nenhuma lesão."


Contrapontos


Jean Severo, advogado de Alexandra Dougokenski


"Pelo que Alexandra nos falou, se trata de suicídio. Ela não tem nenhuma participação nisso. Me causa até estranheza trazer um assunto desses à tona no momento da instrução processual do caso Rafael. A família teve anos para fazer isso e não o fez."


Polícia Civil


Delegado de Farroupilha, Rodrigo Morale afirma que a polícia aguarda ter acesso ao laudo da perícia particular para verificar o que pode ser feito. Após receber o documento, será analisada a possibilidade de reabertura do inquérito.


Chefe da Polícia Civil


Nadine Anflor


"Na investigação do caso Rafael, a polícia analisou o inquérito junto com o IGP e não encontrou elementos que levasse a reabertura da investigação. Havendo novos elementos, polícia segue à disposição."


Instituto-Geral de Perícias


"O Instituto-Geral de Perícias não teve acesso e não se manifesta sobre o trabalho de terceiros. A análise do mérito caberá à Justiça, em momento oportuno. Cabe lembrar que o laudo produzido pelo IGP após a morte de José Dougokiski (o sobrenome foi escrito dessa maneira na carteira de identidade) e a investigação da Polícia Civil convergiram para a conclusão de suicídio causado por asfixia mecânica, não tendo sido solicitadas perícias adicionais. Ressaltamos ainda que a perícia de uma cena de crime é complexa e envolve análises de diferentes vestígios."


Promotor Ronaldo Lara Resende


“Nos entregaram o material hoje, terei de analisar. A situação é complexa e o questionamento feito é em relação a perícia do IGP. Não é um caso que se analisa em 20 minutos, é um material extenso e complexo. Estamos dando prioridade às matérias eleitorais, depois que passar esse período, vamos analisar questões não urgentes e essa é uma delas. Não tenho como precisar quando. Ao analisar, se tiver fundamento, pedimos desarquivamento e, em juiz autorizando, as investigações seguem.”

Fonte: GZH

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